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Fig. 1 Blocos em licitação na região de Joana D’Arc, Canadá. Fonte: C-NLOPB, 2018

Águas Jurisdicionais Brasileiras

O regime de águas estabelecido pela CNUDM tem, num ponto em particular, uma intepretação mais extensiva pelo Brasil no tocante ao que se denomina “águas jurisdicionais brasileiras”(AJB).

A definição de AJB utilizada pela Marinha do Brasil para orientar as Normas da Autoridade Marítima (“NORMAM”) é corrente no meio marítimo brasileiro. De acordo com a NORMAM-4/DPC, que tem por objeto a “operação de embarcações estrangeiras em águas jurisdicionais brasileiras”, as AJB:

“0101. Compreendem as águas interiores e os espaços marítimos, nos quais o Brasil exerce jurisdição, em algum grau, sobre atividades, pessoas, instalações, embarcações e recursos naturais vivos e não vivos, encontrados na massa líquida, no leito ou no subsolo marinho, para os fins de controle e fiscalização, dentro dos limites da legislação internacional e nacional. Esses espaços marítimos compreendem a faixa de duzentas milhas marítimas contadas a partir das linhas de base, acrescida das águas sobrejacentes à extensão da Plataforma Continental além das duzentas milhas marítimas, onde ela ocorrer.”

 

Além da NORMAM-4/DPC, referências às águas sob jurisdição do estado brasileiro ocorrem também na legislação federal: a Lei nº 9537/1997 (Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, ou LESTA), a Lei nº 9966/2000 (Lei do Óleo) e seu respectivo Decreto nº 4136/2002 fazem referência à expressão “águas sob jurisdição nacional”.

A evidência de uma leve distinção de denominações nas referidas leis, que usam o termo  “águas sob jurisdição nacional”, em relação à NORMAM-4/DPC que usa o termo “águas jurisdicionais brasileiras”, incidentalmente, revelou abrigar uma importante distinção de natureza entre as primeiras e esta última.

Os artigos 3º e 4º da LESTA não incluem entre as competências da Autoridade Marítima qualquer controle sobre as águas sobrejacentes à plataforma continental além das 200 milhas marítimas, a “contrario sensu” da parte final da definição da NORMAN 4/DPC que diz “...acrescida das águas sobrejacentes à extensão da Plataforma Continental além das duzentas milhas marítimas, onde ela ocorrer.”

A única referência na LESTA no que concerne à plataforma continental é feita de forma indireta para limitar a competência normativa da Autoridade Marítima à “dragagens, pesquisa e lavra de minerais sob, sobre e às margens das águas sob jurisdição nacional, no que concerne ao ordenamento do espaço aquaviário e à segurança da navegação”[1].

O conceito de AJB da NORMAM 4/DPC se aproxima e se conforma ao conceito de “águas sob jurisdição nacional” do artigo 3º do Decreto nº 4136/2002, que regulamenta a Lei do Óleo: Art. 3o  Para os efeitos deste Decreto, são consideradas águas sob jurisdição nacional: “II - águas marítimas, todas aquelas sob jurisdição nacional que não sejam interiores, a saber: (...) (c) as águas sobrejacentes à plataforma continental quando esta ultrapassar os limites da ZEE”.

Essa definição de “águas sob jurisdição nacional” do artigo 3º do Decreto nº 4136/2002 amplia a redação ao mesmo conceito pela Lei do Óleo, ao mesmo tempo que ambas são leis especiais, cujas definições são aplicadas apenas nas situações de poluição por óleo ali previstas[2].

Como um conceito igualmente específico aplicado a embarcações estrangeiras, mas que deve ser excetuado na hipótese de legislação especial se dele dessoar, o conceito de AJB contido na NORMAM-4/DPC avança a jurisdição do Brasil sobre as águas sobrejacentes à plataforma continental além das 200 milhas marítimas que, por força da CNUDM, são definidas como alto mar, mesmo ponderando nesta medida o uso da complacente expressão “...em algum grau...” que integra a parte inicial daquele conceito.

As águas sob jurisdição nacional compõem a massa d'água limitada pela ZEE. Há nesses limites direitos de soberania e jurisdição e obrigações do Brasil, conforme a LESTA, a Lei do Óleo, a Lei 8.617/1.993, a CNUDM e outros diplomas nacionais e internacionais. O regime jurídico da plataforma continental (solo e subsolo) não se confunde com o regime de águas (mar territorial, zona contígua e ZEE).

O Decreto nº 96000/1998 é um exemplo de respeito aos regimes do mar ao usar a expressão “águas sob jurisdição brasileira”. O referido decreto dispõe sobre a realização de pesquisa e investigação científica na plataforma continental e em águas sob jurisdição brasileira, e sobre navios e aeronaves de pesquisa estrangeiros em visita aos portos ou aeroportos nacionais, em transito nas águas jurisdicionais brasileiras ou no espaço aéreo sobrejacente.

O Brasil não tem direito algum sobre a pesquisa e investigação cientifica realizada no alto mar, mesmo na coluna d’água sobrejacente à porção da plataforma continental além das 200 milhas marítimas. Tampouco permitem a Política Marítima Nacional[3] ou a Política Nacional sobre Recursos dos Mar[4], referidas no artigo 1º do Decreto nº 96000/1998 ampliar o conceito de águas sob jurisdição brasileira ou nacional como faz o conceito de AJB da NORMAM-4/DPC.

 

Além disso, como  argumento jurídico mais relevante, o artigo 78 (1) da CNUDM estabelece de forma expressa que “[o]s direitos do Estado costeiro sobre a plataforma continental não afetam o regime jurídico das águas sobrejacentes ou do espaço aéreo acima dessas águas”; o artigo 78 (2) que “[o] exercício dos direitos do Estado costeiro sobre a plataforma continental não deve afetar a navegação ou outros direitos e liberdades dos demais Estados previstos na presente Convenção, nem ter como resultado uma ingerência injustificada neles”, ou seja, o exercício de direitos do Brasil sobre sua plataforma continental não pode afetar o regime do alto mar.  Essa restrição também fica clara com relação à liberdade de investigação científica marinha na coluna d’água além dos limites da ZEE expresso no artigo 257 da CNUDM.

Há um desafio tecnológico e de “aggiornamento” quanto à interpretação e prática da CNUDM que o Brasil deve enfrentar, com reflexos sobre a definição de AJB da NORMAM-4-DPC, que pode ser aprimorada.

No Brasil, com a extensão da plataforma continental além das 200 milhas marítimas na região do platô de São Paulo, portanto adjacente às áreas de exploração e produção de petróleo e gás natural na bacia de Santos, reconhecida como área do pré-sal, é de se considerar que a exploração e produção de petróleo possa se estender para além das 200 milhas marítimas na plataforma continental, de modo que estruturas ou instalações como plataformas de petróleo ou FPSO possam operar no alto mar, mas na extração de recursos da plataforma continental brasileira.​
 

O Canadá já experimenta essa realidade (Fig. 1). O Canada-Newfoundland and Labrador Offshore Petroleum Board (C-NLOPB), órgão canadense responsável pela regulamentação das atividades petrolíferas nas áreas offshore de Labrador e Terra Nova,  abriu licitação (está aberta até nov/2018) para exploração de licenças de petróleo nas regiões orientais da Terra Nova e Joana d’Arc, bem como de Licença de Produção na região de Joana d’Arc[5]. Essas áreas tem partes além das 200 milhas marítimas e são objeto de uma submissão canadense à CLPC apresentada em 2013, que está na 70ª posição na “fila” (entre 79 submissões definitivas) e, portanto, sem previsão de início de análise, quiçá de recebimento de recomendações. A Figura 2 mostra uma das áreas licitadas pelo Canadá.

 

Há, portanto, um precedente relevante canadense, inclusive comemorado pela Autoridade, como primeiro caso real para implementação do artigo 82 da CNUDM. Esse exemplo corrobora e reforça, no campo prático, que o regime de alto mar poderá ser desafiado em alguns de seus aspectos para abrigar, por exemplo, uma zona de segurança tal como definida nos parágrafos 4 e 5 do artigo 60 e artigo 260 da CNUDM, próprias de uma ZEE.

O Canadá, certamente antes do Brasil, deverá estabelecer uma zona de segurança, tendo em conta as normas internacionais aplicáveis à ZEE, que não excederá o raio de 500 metros dessas instalações ou estruturas, conforme dispõe os referidos parágrafos 4 e 5 do  artigo 60 e artigo 260 da CNUDM.

Neste contexto, o Canadá e o Brasil a seu tempo exercerão jurisdição sobre aquela zona de segurança no alto mar, ao mesmo tempo que será uma área excluída do uso pelos demais estados, numa ingerência justificada no alto mar, conforme permite a parte final do artigo 78 (2), com uma interpretação extensiva, mas particular do artigo 60 da CNUDM.

Assim, se há, então, uma “…jurisdição, em algum grau...” como conceitua a parte inicial da NORMAM 4/DPC, e se a intepretação dos direitos dos estados sobre a ZEE são restritivos, ou seja, os direitos dos estado costeiro são residuais em relação ao que a CNUDM elenca taxativamente no artigo 58 da CNUDM, seria juridicamente mais apropriado, mesmo para se evitar intepretações equivocadas ou mesmo a ausência de referência expressa, que a NORMAM-4/DPC tratasse de conceituar de forma expressa e clara a jurisdição que eventualmente se terá sobre aquelas zonas de segurança, que serão necessárias sob aspectos de segurança da navegação, em especial nas águas sobrejacentes à plataforma continental.

 

Diante desse cenário, a definição de AJB da NORMAM-4/DPC e do Decreto nº 4136/2002 parecem merecer um novo olhar. Com a devida vênia e a título de colaboração para a reflexão sobre o tema, propõe-se uma atualização na definição de AJB para os dois diplomas legais:

“Compreendem as águas interiores e os espaços marítimos nos quais o Brasil exerce jurisdição sobre atividades, pessoas, instalações, embarcações e recursos naturais vivos e não vivos, para os fins de controle e fiscalização, dentro dos limites da legislação internacional e nacional. Esses espaços marítimos compreendem a massa líquida compreendida na faixa de duzentas milhas marítimas contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial, bem como as zonas de segurança em torno de ilhas artificiais, instalações ou estruturas nas águas sobrejacentes à plataforma continental, que devem ser estabelecidas de forma justificada quando situados além do limite das 200 milhas marítimas desta.”

__________

[1] LESTA, artigo 4ª, I, “h.

[2] “Art. 1º.Esta Lei estabelece os princípios básicos a serem obedecidos na movimentação de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em portos organizados, instalações portuárias, plataformas e navios em águas sob jurisdição nacional. Parágrafo único. Esta Lei aplicar-se-á: I – quando ausentes os pressupostos para aplicação da Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição Causada por Navios (Marpol 73/78); II – às embarcações nacionais, portos organizados, instalações portuárias, dutos, plataformas e suas instalações de apoio, em caráter complementar à Marpol 73/78; III – às embarcações, plataformas e instalações de apoio estrangeiras, cuja bandeira arvorada seja ou não de país contratante da Marpol 73/78, quando em águas sob jurisdição nacional; IV – às instalações portuárias especializadas em outras cargas que não óleo e substâncias nocivas ou perigosas, e aos estaleiros, marinas, clubes náuticos e outros locais e instalações similares.”

[3] Decreto nº 1265, de 11 de outubro de 1994. Aprova a Política Marítima Nacional (PNM). DOU 13/10/1994.  Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D1265.htm. Acesso em: 18 Jul. 2018.

[4] Decreto nº 5377, de 23 de fevereiro de 2005. Aprova a Política Nacional para os Recursos do Mar. DOU 24/02/2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5377.htm. Acesso em 18 Jul. 2018.

[5] Canada-Newfoundland and Labrador Offshore Petroleum Board” (C-NLOPB). Call for Bids N. NL18-CFB01 (New Foundland). Exploration Licences in the Canada-New Foundland  and Canada-Labrador Offshore Area. {2018]. Disponível em : http://www.cnlopb.ca/pdfs/landissuance/nl1801legal.pdf?lbisphpreq=1. Acesso em 25 Maio 2018.

Artigos cietíficos relacionados:

 

MORE, Rodrigo F. Regime jurídico do mar: a regulação das águas e da plataforma continental do Brasil. Rev. Esc. Guerra Naval, Rio de Janeiro, v.19, n.1, p. 79-109, jan/jun 2013

 

 

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